Adelaide levantou-se essa manhã como faz todos os dias. Espreguiçou-se. Esticou
as pernas. Deitou novamente e relaxou. Com os olhos fechados tentou raciocinar
sobre o que aconteceu na noite anterior. Torcia para que tudo tivesse sido um
mero pesadelo. Mas não era o que diziam seus braços, arranhados pela escuridão
que se passou. Enjoada do procedimento, sorriu para a lâmpada apagada de seu
quarto. Desejava não estar ali. Após alguns longos eternos minutos, resolveu
ficar de pé e fazer suas atividades diárias e obrigatórias.
O dia não contava
com nada que pudesse torná-lo especial. O céu estava nublado e era possível
sentir o cheiro do vapor. Certamente iria chover. Adelaide não entendia porque
aquele dia não poderia passar rápido, como qualquer outro. Até os segundos
pareciam eternos. Em meio ao seu desespero interno ela gritava, se debatia e
chorava enquanto preparava o café, calmamente. Fitava o açúcar contido na
colher como se fosse um espelho, tentava enxergar a si mesmo. Em vão.
Porém não adiantava, procurava por si mesma enquanto bebia freneticamente
aquela xícara de café. E não se encontrava. Talvez estivesse perdida na noite
anterior, em meio de pessoas desprovidas de sentimentos. Naquela noite, ninguém
sabia o que eram “sentimentos”. Enquanto deliciava-se com o último gole daquele
café, Adelaide sabia que era preciso reunir-se e consertar-se.
Todavia não
existiam pedaços de si somente na noite passada, existiam outras tantas “noites
passadas”. Para procurar-se era necessário vestir-se e sair à luta. Porém
nenhuma roupa que colocava era possível se auto identificar. Quem era
aquela mulher? Adelaide não se lembrava de ter se transformado em uma, apenas observava assustada.
Tentou sorrir, mas aquele sorriso não lhe era familiar, assim como as olheiras
e os cabelos tingidos. Suas pernas estavam transparentes, qual terá sido a
última vez que tomara sol? Ficou imóvel em frente aquele reflexo por três
minutos. Três eternos minutos. Quando
conseguiu desviar o olhar daquela imagem, sentiu-se aliviada. Era como se
pudesse finalmente respirar após quase se afogar em seu próprio tormento. Seus batimentos estavam
acelerados, talvez pela sensação de quase morte que aquela experiência lhe
proporcionou.
Sentou-se. E de costas para o espelho, escovava os cabelos. Quase como uma
terapia, passava lentamente a escova, enquanto seus lábios sorriam involuntariamente e seus olhos nada miravam, estavam fechados, olhando para dentro de si. Adelaide
desejou no seu íntimo, que aquele momento fosse eterno. Mas não passava de uma
utopia de sua mente, passar seus eternos minutos escovando seus longos cabelos.
E se arrumando para mais um dia, praticamente com os olhos fechados, se sentia
bem. Talvez tivesse encontrado alguma parte de si durante os eternos minutos
que passaram, mas isso não lhe era mais prioridade. Precisou abrir os olhos. E
novamente em frente ao espelho, precisava de foco.
Sentiu-se perdida novamente,
mas logo abriu o estojo que estava cuidadosamente fechado e arrumado em sua
penteadeira. Pegou o seu batom vermelho. Com muita atenção, passava-o lentamente
em seus lábios, como se fosse giz de cera. Quando terminou, sorriu involuntariamente como de
costume. Fitando a imagem, ficou feliz por encontrar uma
parte de si. Todavia, não era nenhuma das partes dentro de si, era apenas uma parte de fora. Olhando quase que hipnotizada para sua própria imagem,
cessou as buscas em seu fragilizado interior.
Arrumou sua bolsa, e olhando mais uma vez para o espelho, por alguns eternos
minutos, sentiu-se feliz por ser única. Desceu as escadas de seu apartamento,
atrás de algumas pessoas. Cada qual em sua própria individualidade. Desciam alguns
atrás de Adelaide, todos em uma fila organizada. Todos pareciam fazer o máximo
de esforço para não se tocarem, afinal se sentiam únicos.
Ao sair de
seu prédio determinada, Adelaide sorria involuntariamente ao participar de uma
fila para atravessar a rua. Como sempre, todos únicos. Não se tocavam e não se
olhavam. Ela, por sua vez, não queria olhar para dentro de si, então observava
atentamente seus sapatos enquanto esperava um ônibus.
(...)
E durante muitos eternos minutos, o seu dia estava chegando ao fim. Cansada, tentava retornar à sua casa. Pegou um
cigarro e gentilmente o colocou em sua boca. Enfim, sentia-se aquecida. Não era
mais única. Fincava as unhas nos seus braços, para que seus eternos minutos
passassem o mais rápido possível e estivesse segura em seu lar de concreto.
Adelaide
deparou-se com outras “adelaides” dentro do ônibus. Queria ser única. E
desesperadamente reiniciou sua busca por partes de si, dentro de si. Desceu do
ônibus. Todos andavam em filas. Sem se tocarem e sem se olharem, Adelaide se
torturava ao notar partes de si, espalhadas em pessoas que jamais viu. Em fila,
subiu para seu apartamento.
Seus olhos
protestavam com lágrimas, logo correu para encarar-se no espelho. Não se
reconheceu. Tirou o batom vermelho e suas roupas. Encarava-se por alguns
eternos minutos. Estava aliviada por se encontrar. Seu corpo também protestava,
suas pernas dirigiam-se à cama sem que Adelaide precisasse ordenar. Deitou-se.
(...)
Finalmente era um novo dia, então Adelaide fez nessa manhã, exatamente o que
fazia todas as manhãs. Espreguiçou-se. Esticou as pernas. Deitou novamente,
relaxou. Com os olhos fechados tentou raciocinar sobre o que aconteceu na noite
anterior. Torcia para que tudo tivesse sido um mero pesadelo...